Eu tampo minha boca com as
minhas mãos, mas o som já tinha escapado. O céu fica preto e eu ouço um coro de
sapos começar a cantar. Estúpida! Eu digo a mim mesma. Que coisa estúpida de se
fazer! Eu espero, congelada, para que a floresta fique cheia de assaltantes.
Então eu me lembro que não restou quase ninguém.
Peeta, que foi ferido, é agora
meu aliado. Quaisquer dúvidas que eu tivera sobre ele dissipam-se porque se
qualquer um de nós tirar a vida do outro agora seremos parias quando
retornarmos ao Distrito 12. De fato, eu sei que se estivesse assistindo eu
odiaria qualquer tributo que não se aliou imediatamente com seu parceiro de
distrito. Além do mais, simplesmente faz sentido proteger um ao outro. E no meu
caso – sendo uma dos amantes desafortunadas do Distrito 12 – é um requisito
absoluto se eu quiser mais ajuda dos patrocinadores simpatizantes.
Os amantes desafortunados...
Peeta deve ter jogado esse ângulo o tempo todo. Por que mais os Gamemakers
fariam essa mudança sem precedentes nas regras? Para que dois tributos tenham
uma chance de ganhar, o nosso “romance” deve ser tão popular com a audiência
que condená-lo ameaçaria o sucesso dos Games. Não graças a mim. Tudo que eu fiz
foi conseguir não matar o Peeta. Mas o que quer que ele tenha feito na arena,
ele deve ter convencido a audiência que foi para me manter viva. Balançando sua
cabeça para me impedir de correr para a Cornucópia. Lutando com Cato para me
deixar escapar. Até mesmo se juntar aos Profissionais deve ter sido um
movimento para me proteger. Peeta, ao que parece, nunca foi um perigo para mim.
O pensamento me faz sorrir. Eu
deixo minhas mãos caírem e levanto meu rosto para a luz do luar para que as câmeras
definitivamente a capturem.
Então, quem resta para se
temer? Foxface? O tributo de seu distrito está morto. Ela está operando
sozinha, de noite. E sua estratégia tem sido evadir, não atacar. Eu não acho
realmente que, mesmo que ela tenha ouvido a minha voz, ela faria qualquer coisa
exceto esperar que outro me matasse.
Então tem o Thresh. Tudo bem,
ele é uma ameaça distinta. Mas eu não o vi, nenhuma vez, desde que os Games
começaram. Eu penso em como a Foxface ficou alarmada quando escutou um som no local
da explosão. Mas ela não se virou para a floresta, ela se virou para o que quer
que exista do outro lado dela. Para aquela área da arena que cai em algo que
não conheço. Eu tenho quase certeza de que a pessoa da qual ela fugiu era
Thresh e que aquele era seu domínio. Ele nunca teria me ouvido de lá e, mesmo
que tivesse, estou muito no alto para que alguém do tamanho dele me alcance.
Então resta Cato e a garoto do
Distrito 2, que agora estão com certeza celebrando a nova regra. Eles são os
únicos que restam que se beneficiam com isso além de Peeta e de mim. Eu corro
deles agora, arriscando que eles tenham me ouvido chamar o nome de Peeta? Não,
eu penso. Deixe eles virem. Deixe eles virem com seus óculos de visão noturna e
seus corpos pesados de quebrar galhos. Bem no alcance das minhas flechas. Mas
eu sei que não virão. Se eles não vieram à luz do dia até a minha fogueira,
eles não arriscarão o que poderia ser outra armadilha à noite. Quando eles
vierem, será em seus próprios termos, não porque eu deixei que eles soubessem
meu paradeiro.
Fique quieta e durma um pouco,
Katniss, eu me instruo, apesar de desejar começar a procurar Peeta agora.
Amanhã, você o achará.
Eu durmo, mas de manhã sou
extra-cuidadosa, pensando que embora os Profissionais possam hesitar em me
atacar em uma árvore, eles são completamente capazes de montar uma armadilha
para mim. Eu me certifico de me preparar completamente para o dia – tomando um
grande café-da-manhã, amarrando com firmeza minha mochila, preparando minhas
armas – antes que eu desça. Mas tudo parece pacífico e tranquilo no chão. Hoje
eu terei que ser escrupulosamente cuidadosa. Os Profissionais saberão que estou
tentando localizar Peeta. Eles podem muito bem querer esperar até que eu faça
isso antes de fazerem seu movimento. Se ele está tão profundamente ferido
quanto Cato acha, eu estarei na posição de ter que defender nós dois sem
qualquer assistência. Mas se ele está tão incapacitado, como ele conseguiu
permanecer vivo? E como diabos vou encontrá-lo?
Eu tento pensar em qualquer
coisa que Peeta já tenha dito que pode me dar uma indicação sobre onde ele está
se escondendo, mas nada soa familiar. Então eu volto ao último momento em que o
vi brilhando na luz do sol, gritando para que eu corresse. Então Cato apareceu,
sua espada exposta. E depois que eu parti, ele feriu Peeta. Mas como Peeta
escapou? Talvez ele tenha aguentado melhor o veneno do tracker jacker do que
Cato. Talvez essa tenha sido a variável que permitiu que ele escapasse. Mas ele
fora picado também. Então quão distante ele poderia ter chegado, esfaqueado e
cheio de veneno? E como ele permaneceu vivo todos esses dias desde então? Se o
ferimento e as picadas não o mataram, certamente a sede o teria levado agora.
E é quando eu consigo minha
primeira pista sobre seu paradeiro. Ele não poderia ter sobrevivido sem água.
Eu sei disso por causa dos meus primeiros dias aqui. Ele deve estar escondido
em algum lugar perto de uma fonte. Há o lago, mas eu acho que essa é uma opção
improvável já que está tão perto da base do acampamento dos Profissionais.
Algumas poças alimentadas por nascentes. Mas você realmente seria um alvo fácil
em uma dessas. E o riacho. Aquele que vai do acampamento que Rue e eu fizemos
até lá embaixo perto do lago e além. Se ele ficasse perto do riacho, ele podia
mudar sua localização e sempre ficar próximo à água. Ele podia andar na
corrente e apagar quaisquer vestígios. Ele pode até ser capaz de pegar um ou
dois peixes.
Bem, é um local para começar,
de qualquer maneira.
Para confundir a mente dos meus
inimigos, eu começo uma fogueira com muita madeira verde. Mesmo que eles achem
que é um ardil, espero que eles decidam que estou escondida em algum lugar
próximo. Quando, na realidade, estarei caçando o Peeta.
O sol queima a bruma matinal
quase imediatamente e eu consigo afirmar que o dia será mais quente que o
normal. A água está fria e agradável nos meus pés descalços enquanto eu me
dirijo corrente abaixo. Estou tentada a chamar o nome de Peeta enquanto ando,
mas decido não fazê-lo. Terei que encontrá-lo com meus olhos e um ouvido bom ou
ele terá que me achar. Mas ele saberá que estarei procurando, certo? Ele não
tem uma opinião tão baixa de mim para pensar que eu ignoraria a nova regra e
ficaria sozinha. Teria? Ele é muito difícil de se prever, o que poderia ser
interessante sob circunstâncias diferentes, mas no momento só providencia um
obstáculo extra.
Não demora muito para alcançar
o ponto onde eu parti para ir ao acampamento dos Profissionais. Não há sinal do
Peeta, mas isso não me surpreende. Eu já passei acima e abaixo dessa extensão
por três vezes desde o incidente do tracker jacker. Se ele estivesse próximo,
eu certamente teria suspeitado disso. O riacho começa a curvar para esquerda
numa parte da floresta que é nova para mim. Ribanceiras lamacentas cobertas por
plantas aquáticas levam a pedras grandes que aumentam de tamanho até eu começar
a me sentir meio presa. Não seria pouca coisa escapar do riacho agora. Lutar
contra Cato ou Thresh enquanto eu escalo esse terreno rochoso. De fato, eu acabo
de decidir que estou completamente no caminho errado, que um garoto ferido
seria incapaz de navegar para dentro e fora dessa fonte d’água, quando vejo o
vestígio sangrento descendo pela curva de uma pedra grande desgastada. Está
muito seco agora, mas as linhas manchadas correndo lado a lado sugerem que
alguém – que talvez não estivesse em total controle de suas faculdades mentais
– tentou limpá-las.
Abraçando as pedras, eu me movo
lentamente na direção do sangue, procurando por ele. Eu encontro mais algumas
manchas de sangue, uma com algumas fibras de tecido coladas nela, mas sem sinal
de vida. Eu me descontrolo e digo seu nome em uma voz abafada. “Peeta! Peeta!”
Então um mockingjay pousa numa árvore desgastada e começa a imitar meus tons, então
eu paro. Eu desisto e desço até o riacho, pensando, Ele deve ter se deslocado.
Para algum lugar mais abaixo.
Meu pé acabou de romper a
superfície da água quando ouça uma voz.
“Está aqui para acabar comigo,
querida?”
Eu me viro. Veio da esquerda,
então eu não consigo captar muito bem. E a voz estava rouca e fraca. Ainda
assim, deve ter sido o Peeta. Quem mais na arena me chamaria de querida? Meus
olhos examinam cuidadosamente a ribanceira, mas não há nada. Só lama, as
plantas, a base das pedras.
“Peeta?” eu sussurro. “Onde
você está?” Não há resposta. Será que eu simplesmente imaginei isso? Não, tenho
certeza que foi real e muito próximo também. “Peeta?” eu me arrasto pelo
ribanceira.
“Ora, não pise em mim.”
Eu pulo para trás. Sua voz
estava bem abaixo do meu pé. Ainda não há nada. Então seus olhos se abrem,
inconfundivelmente azuis na lama marrom e nas folhas verdes. Eu arfo e sou
recompensada por um vestígio de dentes brancos enquanto ele ri.
É a palavra final em
camuflagem. Esqueça arremessar pesos por aí. Peeta deveria ter ido para sua
sessão privada com os Gamemakers e se pintado de árvore. Ou de uma pedra grande
desgastada. Ou de uma ribanceira lamacenta cheia de ervas daninhas.
“Feche seus olhos novamente,”
eu ordenei. Ele fecha, e sua boca também, e desaparece completamente. A maior
parte do que julgo ser seu corpo está na verdade sob uma camada de lama e
plantas. Sua face e braços estão tão habilidosamente disfarçados para que
fiquem invisíveis. Eu me ajoelho ao lado dele. “Eu acho que todas aquelas horas
decorando bolos vieram a calhar.”
Peeta sorri. “Sim, glacê. A
defesa final dos moribundos.”
“Você não vai morrer,” eu digo
a ele firmemente.
“Quem disse?” Sua voz está tão
atormentada.
“Eu disse. Estamos no mesmo
time agora, sabe,” eu digo a ele.
Seus olhos se abrem. “Então,
ouvi dizer. Que legal da sua parte achar o que restou de mim.” Eu puxo minha
garrafa d’água e dou-lhe pra beber. “O Cato te cortou?” eu pergunto.
“Perna esquerda. Bem acima,”
ele responde.
“Vamos te colocar no riacho, te
lavar para que eu possa ver que tipos de machucados você tem,” eu digo.
“Incline-se um minuto
primeiro,” ele diz. “Preciso te dizer algo.” Eu me inclino e coloco meu ouvido
bom nos lábios dele, o que provoca cócegas quando ele sussurra. “Lembre-se,
estamos loucamente apaixonados, então não tem problema me beijar quando sentir
vontade.”
Eu levanto minha cabeça
abruptamente, mas acabo rindo. “Obrigada, lembrarei disso.” Pelo menos, ele
ainda é capaz de fazer piada. Mas quando eu começo a ajudá-lo a ir até o
riacho, toda a leveza desaparece. São apenas sessenta centímetros de distância,
quão difícil pode ser? Muito difícil, quando percebo que ele é incapaz de se
mover um centímetro sozinho. Ele está tão fraco que o melhor que pode fazer é
não resistir. Eu tento arrastá-lo, mas apesar do fato de eu saber que ele está
fazendo tudo que pode para ficar quieto, gritos agudos de dor escapam dele. A
lama e as plantas parecem tê-lo aprisionado e eu finalmente tenho que dar um
puxão gigantesco para libertá-lo de suas amarras. Ele ainda está há sessenta
centímetros da água, deitado ali, os dentes cerrados, as lágrimas cortando
caminho na sujeira em seu rosto.
“Olha, Peeta. Vou te rolar até
o riacho. É bem raso lá, tudo bem?” eu digo.
“Excelente,” ele diz.
Eu agacho ao lado dele. Não
importa o que aconteça, eu digo a mim mesma, não pare até que ele esteja na
água. “No três,” eu digo. “Um, dois, três!” Eu só consigo dar uma rodada
completa antes de ter que parar por causa do som horrível que ele faz. Agora
ele está na beira do riacho. Talvez isso seja melhor, de qualquer jeito. “Está
bem, mudança de planos. Não vou te colocar totalmente dentro,” eu digo a ele.
Além do mais, se eu colocá-lo dentro, quem sabe se eu serei capaz de tirá-lo?
“Nada mais de rolar?” ele
pergunta.
“Já acabou. Vamos te limpar.
Fique de olho na floresta por mim, está bem?” eu digo. É difícil saber por onde
começar. Ele está tão empastado com lama e folhas desbotadas, não consigo nem
ver suas roupas. Se ele estiver usando roupas. O pensamento me faz hesitar por
um momento, mas então eu mergulho. Corpos nus não são nada demais na arena,
certo?
Eu tenho duas garrafas d’água e
a odre de água da Rue. Eu as apoio contra as pedras no riacho para que as duas
estejam sempre enchendo enquanto eu entorno a terceira sobre o corpo do Peeta.
Leva um tempo, mas eu finalmente me livro de lama o bastante para achar suas
roupas. Eu gentilmente abro sua jaqueta, desabotoou sua camiseta e as tiro
dele. Sua camiseta está tão emplastrada em seus ferimentos que eu tenho que
cortá-la com a minha faca e banhá-lo novamente para soltá-la. Ele está muito
ferido com uma ampla queimadura ao longo de seu peito e quatro picadas de
tracker jackers, se contar aquela embaixo de sua orelha. Mas eu me sinto um
pouco melhor. Esse tanto eu posso consertar. Eu decido cuidar da parte superior
de seu corpo primeiro, para aliviar um pouco da dor, antes que eu cuide de
qualquer dano que Cato tenha feito a sua perna.
Já que cuidar de seus
ferimentos parece inútil quando ele está deitado no que virou uma poça de lama,
eu consigo apoiá-lo contra uma pedra grande e desgastada. Ele fica sentado lá,
sem reclamar, enquanto eu lavo todos os traços de terra de seu cabelo e pele.
Sua pele está muito pálida à luz do sol e ele não parece mais forte e troncudo.
Eu tenho que escavar as picadas de tracker jacker de seus inchaços, o que faz
com que ele recue, mas no instante que eu aplico as folhas ele suspira em
alívio. Enquanto ele seca ao sol, eu lavo sua camiseta e jaqueta imundas e
espalho-as sobre as pedras grandes desgastadas. Então eu aplico o creme contra
queimadura em seu peito. É quando eu noto como sua pele ficou quente. A camada
de lama e as garrafas d’água disfarçaram o fato de que ele está queimando de
febre. Eu procuro no kit de primeiros socorros que consegui do garoto do
Distrito 1 e encontro pílulas que reduzem sua temperatura. Minha mãe na verdade
sucumbe as compras ocasionalmente quando seus medicamentos caseiros falham.
“Engula-as,” eu digo a ele, e
ele obedientemente toma o remédio. “Você deve estar faminto.”
“Na verdade não. É engraçado,
eu não tenho estado faminto há dias,” diz Peeta. De fato, quando eu lhe ofereço
groosling, ele torce seu nariz para ele e o afasta. É quando eu fico sabendo
como ele está doente.
“Peeta, precisamos te dar
comida,” eu insisto.
“Vai simplesmente voltar,” ele
diz. O melhor que eu posso fazer é fazê-lo comer alguns pedacinhos de maça
seca. “Obrigado. Estou muito melhor, sério. Posso dormir agora, Katniss?” ele
pergunta.
“Logo,” eu prometo. “Preciso
olhar para a sua perna primeiro.” Tentando ser o mais gentil que consigo,
removo suas botas, suas meias, e então muito lentamente tiro sua calça,
centímetro por centímetro. Eu consigo ver o rasgo que a espada de Cato fez no
tecido sobre sua coxa, mas de jeito algum me preparo para o que há abaixo. O
corte profundamente inflado esvaindo tanto sangue quanto pus. O inchaço da
perna. E pior de tudo, o cheiro da carne supurando.
Eu quero fugir. Desaparecer na
floresta como eu fiz naquele dia que eles trouxeram a vítima de queimadura para
a nossa casa. Ir caçar enquanto a minha mãe e a Prim cuidam do que eu não tenho
nem a habilidade nem a coragem de enfrentar. Mas não há ninguém aqui exceto eu.
Eu tento capturar o comportamento calmo que minha mãe assume quando lida com
casos particularmente ruins.
“Bem horrível, hein?” diz
Peeta. Ele está me observando atentamente.
“Mais ou menos.” Eu dou de
ombros como se não fosse nada demais. “Você deveria ver algumas das pessoas que
levam pra minha mãe das minas.” Eu me abstenho de dizer como eu geralmente saio
da casa sempre que ela trata de alguém com algo pior que um resfriado.
Pensando
nisso, eu nem gosto muito de ficar perto de tosses. “A primeira coisa que se
deve fazer é limpá-lo bem.”
E deixei Peeta de cueca porque
ela não está em má condição e eu não quero puxá-la sobre sua coxa inchada e,
tudo bem, talvez a ideia de vê-lo pelado me deixa desconfortável. Essa é outra
coisa sobre a minha mãe e a Prim. Nudez não tem efeito sobre elas, não lhes dá
motivo algum para envergonhamento. Ironicamente, a esta altura dos Games, minha
irmãzinha seria de muito mais utilidade para Peeta do que eu sou. Eu movo meu
quadrado de plástico sob ele para que possa lavar o resto dele. Com cada
garrafa que eu derramo sobre ele, pior seu ferimento aparece. O resto da parte
inferior de seu corpo está muito bom, só uma picada de tracker jacker e algumas
poucas queimaduras que eu trato rapidamente. Mas o corte em sua perna... que
diabos posso fazer com isso?
“Por que não deixamos respirar
um pouco e então...” eu dissipo.
“E então você remenda?” diz
Peeta. Ele parece quase com pena de mim, como se soubesse como estou perdida.
“É mesmo,” eu digo. “Enquanto
isso, coma isso.” Eu ponho algumas metades de peras secas em sua mão e volto
para o riacho para lavar o resto de suas roupas. Quando elas estão esticadas e
secando, eu examino o conteúdo do kit de primeiros socorros. São coisas bem
básicas. Bandagens, pílulas de febre, remédios para acalmar estômagos.
Nada do calibre que eu preciso
para tratar o Peeta.
“Teremos que experimentar
alguns,” eu admito. Eu sei que as folhas dos tracker jacker extraem a infecção,
então eu começo com elas. Dentro de minutos pressionando o punhado de coisas
verdes mastigadas no ferimento, pus começa a escorrer pela lateral de sua
perna. Eu digo a mim mesma que isso é uma coisa boa e mordo o interior da minha
bochecha forte porque meu café-da-manhã está ameaçando fazer uma reaparição.
“Katniss?” Peeta diz. Eu
encontro seus olhos, sabendo que meu rosto deve estar de algum tom de verde.
Ele balbucia as palavras. “E quanto aquele beijo?”
Eu caio em risada porque a
coisa toda é tão revoltante que não consigo aguentar.
“Algo errado?” ele pergunta um
tanto ingenuamente demais.
“Eu... eu não sou nada boa com
isso. Eu não sou a minha mãe. Eu não faço ideia do que estou fazendo e odeio
pus,” eu digo. “Ui!” eu me permito soltar um resmungo enquanto lavo a primeira
rodada de folhas e aplico a segunda. “Uuui!”
“Como você caça?” ele pergunta.
“Confie em mim. Matar coisas é
muito mais fácil que isso,” eu digo. “Apesar de que, pelo que sei, possa estar
te matando.”
“Pode se apressar um
pouquinho?” ele pergunta.
“Não. Cala a boca e coma suas
peras,” eu digo.
Após três aplicações e o que
parece ser um balde de pus, o ferimento parece mesmo melhor. Agora que o
inchaço abaixou-se, eu consigo ver o quão profundamente a espada de Cato
cortou. Até o osso.
“E agora, Dra. Everdeen?” ele
pergunta.
“Talvez eu coloque um pouco da
pomada pra queimadura nisso. Eu acho que ajuda com infecção, de qualquer jeito.
E enfaixar?” eu digo. Eu faço isso e a coisa toda parece muito mais
controlável, coberta em algodão branco limpo. Apesar de que, contra a bandagem
estéril, a bainha de sua cueca parece nojenta e transbordando com doenças
contagiosas. Eu puxo a mochila da Rue. “Aqui, cubra-se com isso e eu lavarei
sua cueca.”
“Ah, eu não ligo se você me
ver,” diz Peeta.
“Você é exatamente como o resto
da minha família,” eu digo. “Eu ligo, tudo bem?” Eu viro de costas e olho para
o riacho até que a cueca chapinhe na corrente. Ele deve estar se sentindo um
tantinho melhor se ele consegue atirar.
“Sabe, você é meio sensível
para uma pessoa tão letal,” diz Peeta enquanto eu bato sua cueca entre duas
pedras para limpá-la.
“Gostaria de ter deixado você
dar um banho no Haymitch no final das contas.” Eu torço meu nariz para a
memória. “O que ele te mandou até agora?”
“Nadinha,” diz Peeta. Então há
uma pausa, enquanto ele se dá conta.
“Por que, você conseguiu algo?”
“Remédio para queimadura,” eu
digo quase timidamente. “Ah, e um pouco de pão.”
“Eu sempre soube que você era a
favorita dele,” diz Peeta.
“Por favor, ele não suporta
ficar no mesmo cômodo que eu," eu digo.
“Porque vocês são muito
parecidos,” resmunga Peeta. Eu ignoro isso, no entanto, porque essa realmente
não é a hora de eu insultar o Haymitch, que é meu primeiro impulso.
Eu deixo Peeta cochilar
enquanto suas roupas secam, mas ao final da tarde, eu não ouso esperar ainda
mais. Eu gentilmente balanço seu ombro. “Peeta, temos que ir agora.”
“Ir?” Ele parece confuso. “Ir
para onde?”
“Pra longe daqui. Corrente
abaixo talvez. Para algum lugar em que possamos nos esconder até que você
esteja mais forte,” eu digo. Eu ajudo-o a se vestir, deixando seus pés
descalços para que possamos andar na água, e puxo-o na vertical. Seu rosto é
drenado de cor no momento que coloca peso em sua perna. “Vamos. Você consegue
fazer isso.”
Mas ele não consegue. Não por
muito tempo, pelo menos. Nós andamos cerca de quarenta e cinco metros
correnteza abaixo, com ele apoiado no meu ombro, e eu posso afirmar que ele vai
desmaiar. Eu o sento na ribanceira, coloco sua cabeça entre seus joelhos, e dou
tapinhas em suas costas sem jeito enquanto vasculho a área. É claro, eu
adoraria colocá-lo em cima de uma árvore, mas isso não vai acontecer. Podia ser
pior, contudo. Algumas dessas pedras formam pequenas estruturas parecidas com
cavernas. Eu ponho meus olhos em uma a cerca de dezoito metros acima do riacho.
Quando é capaz de ficar em pé, eu meio guio, meio carrego-o até a caverna. Na
verdade, eu gostaria de procurar um lugar melhor, mas esse terá que servir
porque meu aliado está ferido. Branco feito papel, arfando, e, apesar de ter
começado agora a esfriar, ele está tremendo.
Eu cubro o chão da caverna com
uma camada de folhas de pinheiro, desenrolo meu saco de dormir, e o enfio
dentro dele. Eu ponho algumas pílulas e um pouco de água dentro dele quando ele
não está notando, mas ele se recusa a comer até mesmo a fruta. Então ele
simplesmente fica deitado ali, seus olhos treinados no meu rosto enquanto eu
construo um tipo de cobertura de vinhas para esconder a boca da caverna. O
resultado é insatisfatório. Um animal poderia não questionar isso, mas um
humano veria que mãos tinham manufaturado isso rápido o bastante. Eu rasgo-a em
frustração.
“Katniss,” ele diz. Eu vou até
ele e tiro o cabelo de seus olhos. “Obrigado por me encontrar.”
“Você teria me encontrado se
pudesse,” eu digo. Sua testa está queimando. Como se o remédio não está fazendo
efeito algum.
De repente, do nada, fico com
medo que ele vá morrer.
“Sim. Olha, se eu não voltar –”
ele começa.
“Não fale assim. Eu não drenei
todo esse pus por nada," eu digo.
“Eu sei. Mas só no caso de eu
não –” ele tenta continuar.
“Não, Peeta, eu não quero nem
discutir isso,” eu digo, colocando meus dedos em seus lábios para silenciá-lo.
“Mas eu –” ele insiste.
Impulsivamente, eu me inclino
para frente e beijo ele, parando suas palavras. Isso está provavelmente
atrasado, de qualquer jeito, já que ele está certo, nós devíamos estar
loucamente apaixonados. É a primeira vez que eu beijei um garoto, o que deveria
fazer algum tipo de impressão, eu acho, mas tudo que consigo registrar é como
seus lábios estão anormalmente quentes de febre. Eu me separo e puxo a beirada
do meu saco de dormir ao redor dele. “Você não vai morrer. Eu proíbo isso. Está
certo?”
“Está certo,” ele sussurra.
Eu saio no ar frio da noite bem
quando um paraquedas flutua do céu. Meus dedos rapidamente desfazem o nó,
esperando por algum medicamento real para tratar a perna de Peeta. Ao invés
disso eu encontro pote de caldo quente. Haymitch não podia estar me mandando
uma mensagem mais clara. Um beijo equivale a um pote de caldo. Eu quase consigo
ouvir seu resmungo.
“Você deveria estar apaixonada,
querida. O garoto está morrendo. Me dê algo com o que possa trabalhar!"
E ele está certo. Se eu quero
manter Peeta vivo, eu tenho que dar à audiência algo a mais para se preocupar.
Amantes desafortunados desesperados para chegar em casa juntos. Dois corações
batendo como um. Romance.
Nunca tendo me apaixonado, isso
será realmente difícil. Eu penso nos meus pais. O jeito como meu pai nunca
falhou em trazer presentes para ela da floresta. O modo como o rosto de minha
mãe se iluminava ao som das botas dele na porta. O jeito como ela quase tinha
parado de viver quando ele morreu.
“Peeta!” eu digo, tentando o
tom especial que minha mãe usava só com o meu pai. Ele cochilou novamente, mas
eu o beijo para acordá-lo, o que parece assustá-lo. Então ele sorri como se
fosse ficar feliz em ficar deitado ali me olhando para sempre. Ele é ótimo
nessas coisas.
Eu levanto o pote. “Peeta, olhe
o que Haymitch te mandou.”
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